Decisão do Supremo Tribunal Federal representa a ponta do iceberg
O Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu recentemente a inconstitucionalidade da tributação sobre o salário maternidade no que se refere à contribuição patronal, dentre os argumentos, pela importância de se alcançar a isonomia entre homens e mulheres.
O ministro Luís Roberto Barroso, por exemplo, asseverou que o afastamento da referida tributação privilegia a isonomia, a proteção da maternidade e da família, além de diminuir o caráter discriminatório entre homens e mulheres no mercado de trabalho.
Como é consabido, o Princípio da Igualdade está elencando na Constituição Federal, representando, inclusive, a própria premissa de um Estado Democrático de Direito.
Nesse sentido, importa registrar que o Direito Tributário deveria ser, pelo menos, em tese, instrumento de justiça fiscal e consequentemente social. Aliás, este pode ser concebido em várias acepções pela doutrina moderna e tradicional.
Paulo de Barros Carvalho, por exemplo, o preceitua como “ramo didaticamente autônomo, integrado pelo conjunto das proposições jurídico-normativas que correspondam, direta ou indiretamente, à instituição, arrecadação e fiscalização de tributos”.
Hugo Segundo, por sua vez, o conceitua como a conjunção de normas jurídicas com vistas a disciplinar à atividade de tributação de forma a observar critérios e limites pré-estabelecidos na cobrança de tributos e penalidades pecuniárias.
Limites esses que, consoante o próprio autor, têm também como escopo a imposição à tributação, com base em normas já pré-estabelecidas, norteadas por princípios basilares, como igualdade, capacidade contributiva, segurança e etc.
Nesse sentido, esses “limites”, também entendidos pelo primeiro autor como valores, são de suma importância para regulamentar a relação da Administração e dos administrados. Sem eles não há garantia das liberdades individuais e tampouco a estabilização das relações, o que se evita, assim, o poder de império exacerbado do Estado.
O que significa que o Estado, em sua posição de autoridade, não possui poder ilimitado, devendo-se se submeter à sistemática dos princípios constitucionais tributários.
Isso porque os “limites”/valores, já salientados, advém de normas anteriores, como a Constituição Federal que é suprema, devendo ser respeitada e utilizada como parâmetro para as demais normas em respeito ao próprio paradigma do Estado Democrático de Direito.
Nas lições de Kelsen, por exemplo, há o pressuposto da norma hipotética fundamental[1] ,o que significa que a Constituição é o “fechamento” do sistema, delimitando-se o plano do dever-ser.
Com esses primados de fechamento está associado o tão importante Princípio da Igualdade, pressuposto de um Estado Democrático de Direito, estampado, primeiramente, no próprio caput do artigo 5º da Constituição, daí sua extrema relevância!
Posto isso, indubitavelmente deve-se conferir grande relevância a decisão do STF por tornar possível, em matéria tributária, a concretização da igualdade de gênero.
Insta salientar que embora referido pressuposto seja preceito constitucional, integrante do próprio Estado Democrático de Direito, ainda não há efetiva concretização na tributação do referido princípio.
À guisa de exemplo, em pesquisa realizada por um departamento de consumo de Nova York[2], constatou-se que os produtos “femininos” – com versões compatíveis masculinas – são cerca de 7% mais caros que estes, o que vem ocorrendo também de forma similar no Brasil.
Em alguns países, as declarações de imposto das mulheres casadas estão ainda condicionadas as de seus respectivos cônjuges e há também ônus maior no seguro de saúde para mulheres.
No Brasil ocorre ainda a maior carga tributária em produtos tipicamente femininos e essenciais às mulheres, como os tampões e absorventes. Nesse ponto, questiona-se também o princípio da essencialidade, do qual se deve tributar menos os produtos essenciais e mais os produtos supérfluos.
Pondera-se, desde já, que há possibilidade de tratamentos diferenciados justamente na tentativa de se alcançar a isonomia, haja vista o necessário tratamento desigualmente para os desiguais na medida em que se desigualam.
Referido pressuposto está presente desde Aristóteles[3], ao consagrar a igualdade aritmética, firmando relação de retribuição e causa, bem como da igualdade geométrica em que cada um recebe direitos de acordo com suas funções.
Ocorre que no Estado Democrático de Direito, o tratamento diferenciado deverá ser estabelecido com base em critérios que motivem tal ato. É o que acontece, por exemplo, no âmbito tributário, ao se consagrar o princípio da capacidade contributiva (art. 145, § 1º, CF), uma vez que, sempre que possível, busca-se tributar os indivíduos de forma diferenciada levando-se em consideração suas condições econômicas para se evitar a disparidade na tributação.
Percebe-se, assim, que no Estado Democrático de Direito, o paradigma muda. Antônio Bandeira de Mello sabidamente trouxe critérios determinantes para se justificar a não adoção da isonomia em si: a) fator tomado como discrimen em si; b) relação lógica entre o fator de discrimen e o tratamento diferenciado e c) se estes não afrontam o texto constitucional.
Por todo o exposto, infere-se que a tributação elevada concernente a produtos tipicamente femininos apresenta caráter discriminatório em nada se justificando com os critérios elencados acima que possibilitam caráter diferenciado dentro do escopo constitucional.
Dessa maneira, a decisão do STF representa grande monta por se adequar a parâmetros do Estado de Direito de modo a possibilitar mitigação das disparidades da desigualdade de gênero, que no Brasil é latente, inclusive, no mercado de trabalho.
Lado outro, como bem assevera Tathiane Piscitelli, ao ponderar sobre as atuais propostas de reformas tributárias, que apresentam caráter discriminatório, é necessário ampliar a discussão para que o passo do STF não seja o último, haja vista que há muito ainda que se perquirir sobre a desigualdade de gênero.
De todo modo, também é latente que a decisão do Tribunal foi extremamente acertada, representando a ponta do iceberg…
FONTE: CAMILA VILAÇA – Advogada e professora Tributarista de Cursos Jurídicos. Secretária-geral da Comissão de Direito Tributário da 15ª Subseção da OAB/SC.